OS EFEITOS DA APRENDIZAGEM PSICOMOTORA NO CONTROLE DAS ATIVIDADES DE LOCOMOÇÃO SOBRE OBSTÁCULOS EM CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA DA VISÃO
A deficiência visual é classificada, de acordo com o DSM IV, em dois tipos: cegueira e baixa visão. A cegueira é definida como a perda total da visão até a ausência de projeção de luz. A baixa visão é definida como a perda severa da visão e apresenta uma acuidade visual inferior a 20/60 ou campo visual inferior a 10 graus do seu ponto de fixação, de forma que não pode ser corrigida por meio do uso de óculos convencionais, por tratamento clínico nem mesmo por intervenção
cirúrgica.
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam a existência de aproximadamente 40 milhões de pessoas deficientes visuais no mundo, e destes, 75% em regiões consideradas em desenvolvimento. O Brasil apresenta uma taxa de incidência de deficiência visual entre 1,0 a 1,5% da população. A estimativa de cegueira infantil é de 1 entre 3.000 crianças e de 1 entre 500 crianças para baixa visão. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Visão Subnormal, 70 a 80% das crianças inicialmente diagnosticadas como cegas, na verdade possuem alguma visão útil.
O aproveitamento do potencial visual remanescente das crianças com baixa visão raramente é uma questão que depende exclusivamente da maturação ou que se desenvolve de forma espontânea a partir das atividades rotineiras. Sendo assim, toda criança com baixa visão deve ser submetida a um programa especial de estimulação, que auxilie no desenvolvimento do processo de discriminação de formas, contornos, figuras e símbolos.
A visão possui um papel chave no desenvolvimento motor, pois tanto coloca a criança em contato com a realidade externa como lhe fornece estímulos que auxiliam na orientação e no controle da ação corporal. Grande parte das experiências da criança na exploração do meio, na descoberta do próprio corpo, no contato com os objetos e na relação com os outros, tem uma participação direta da visão, que se torna um elemento chave na organização da ação motora voluntária,
consciente e segura.
Observa-se, por exemplo, que as vezes os bebês cegos, às vezes, apresentam um atraso no desenvolvimento motor, pois lhes faltam estímulos que provoquem a necessidade ou a vontade de se movimentar.
Deve-se também considerar que o movimento, além de abranger atos motores, assume uma dimensão social.
Mover-se, portanto, possibilita à criança tanto exercitar a autonomia de tentar entrar em contato com os outros, como desperta o interesse do outro de se aproximar e buscar uma interação maior.
Os estudos sobre controle visual da locomoção sobre obstáculos destacam duas variáveis que devem ser moduladas: 1) o posicionamento do pé antes do obstáculo, e; 2) a elevação da perna durante a ultrapassagem. Ajustes nestas duas variáveis caracterizam o processo de integração perceptivo-motor que, associado com informações precisas sobre a posição, altura e tipo de obstáculo, permitem a execução de um movimento correto.
Normalmente, como as informações sobre posição e características de um obstáculo estão previamente disponíveis durante a fase de aproximação, a pessoa pode planejar com antecedência as estratégias a serem utilizadas para ultrapassá-lo. Neste caso, a informação visual é utilizada através de um controle antecipado (Feed-forward).
Os efeitos da qualidade da informação visual durante a locomoção sobre obstáculos foram recentemente analisados em um estudo com idosos durante a locomoção sobre alvos marcados no solo. O estudo mostrou que a manipulação da informação visual em diferentes momentos dentro do ciclo da passada causou efeitos significativos no posicionamento dos pés e na realização da tarefa para o grupo de idosos. Quando a informação visual foi disponível somente na fase de apoio o erro na realização da tarefa foi cerca de 23%. No momento em que a informação visual esteve disponível somente na fase de balanço o erro aumentou ainda mais (42%). Os resultados mostram que o declínio da capacidade visuo-motora, causado pelo processo de envelhecimento, altera a forma como os idosos utilizam a informação visual para planejar e executar tarefas motoras.
Em um outro estudo realizado com idosos com maculopatia, que, de certa forma podem ser comparados às crianças com baixa visão, mostrou alterações significativas no controle motor dos movimentos durante a ultrapassagem. Comparados com um grupo controle os idosos com maculopatia apresentaram um posicionamento do pé de apoio mais afastado do obstáculo e uma maior elevação do pé durante a ultrapassagem do obstáculo. As duas alterações são explicadas pelos autores como uma estratégia utilizada pelos idosos para obter um maior tempo para realizar correções durante a ultrapassagem, garantindo assim uma ultrapassagem mais segura.
Um programa de treinamento com seis crianças com idade de cinco a oito anos, alunos do Centro de Ensino Especial de Deficientes Visuais (CEEDV) de Brasília-DF foi realizado para verificar se estas crianças eram capazes de aprender a utilizar estímulos proprioceptivos , associados ao potencial visual remanescente.
O programa de treinamento foi aplicado pelos próprios professores de Educação Física do CEEDV, duas vezes por semana, durante as aulas de Educação Física, totalizando vinte sessões. O programa de treinamento deve ser funcional, realizado individualmente e num ambiente adequado. O envolvimento dos professores da escola possibilitou a criação de um ambiente
educativo familiar e afetivamente seguro, além de validar ecologicamente o programa.
A sessão de treinamento tinha duração de quinze minutos, sendo realizada com supervisão direta e constante do professor. As crianças realizaram as aulas descalças e recebiam feedback do professor após cada execução. As atividades enfatizaram a ultrapassagem de obstáculos variados em situações também variadas.
O treinamento incluiu diversas atividades sendo realizadas tanto com os olhos abertos, estimulando o uso do potencial visual remanescente, quanto com os olhos fechados, estimulando o uso compensatório das outras fontes de informações perceptivas do ambiente e do próprio corpo. As atividades foram as seguintes: subir e descer escadas; transpor pneus e objetos de alturas variadas; e elevar os joelhos de forma alternada e em alturas diferentes.
As análises qualitativa e biomecânica sugerem que as crianças com baixa visão realizam uma combinação das estratégias propostas. O posicionamento do pé mais distante do obstáculo forçou os participantes a realizarem tanto uma maior elevação da perna quanto uma elevação do centro de gravidade. Embora não tenha sido coletado dados específicos sobre o cento de gravidade, os indicadores qualitativos mostram que muitos participantes utilizaram os braços para se manterem em equilíbrio durante a ultrapassagem. Isto mostra que a aproximação indevida gerou mudanças globais na locomoção.
Os resultados indicam que, durante a ultrapassagem de um obstáculo, crianças com baixa visão necessitam realizar um ajustamento contínuo do controle motor, visto que as informações visuais adquiridas no momento da aproximação do obstáculo não bastam para um planejamento antecipado da tarefa motora.
Mesmo com pouco tempo de treinamento, o programa composto de atividades simples, geralmente presentes num ambiente rico em vivências corporais, mostrou-se eficiente e contribuiu para a realização da ultrapassagem do obstáculo, conforme observado na redução da elevação do joelho, e, conseqüentemente, para conscientização corporal das crianças.
Sendo assim, o trabalho educacional com crianças portadoras de baixa visão deve ressaltar a necessidade do enriquecimento proprioceptivo, para ampliar as fontes de informações sensoriais e propiciar mais segurança e independência na locomoção, principalmente nas aulas de Educação Física.
As contribuições advindas desse tipo de programa de estimulação não se restringem ao controle visual da locomoção, pois existe uma interação muito próxima entre visão e desenvolvimento, de forma que a aprendizagem psicomotora amplia consideravelmente as possibilidades da criança descobrir e, progressivamente, dominar um conjunto de habilidades relacionadas com seu
próprio corpo, com os objetos e suas diferentes características, com as dimensões espaciais e temporais, como também, com a comunicação e socialização com o outro, seja ele adulto ou criança.
Estudos sobre este assunto são de fundamental importância para um melhor entendimento do controle motor em portadores de deficiência visual, pois a locomoção segura e independente é um avanço importante na qualidade de vida dessas pessoas.
FONTE: REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
AUTORES: Luiz Cezar dos SANTOS; Janine Eliza de Oliveira Silva PASSOS; Alexandre Luiz Gonçalves de REZENDE